personagem 2.
O vento soprava gélido pelas montanhas, e eu, descalça, sentia o frio rasgar a pele como lâminas invisíveis. A noite já havia caído, e o céu, coberto por um véu de nuvens densas, escondia o brilho da Lua que sempre me guiava. Ali, no silêncio solitário, eu vagava pelos caminhos esquecidos, envolta em pensamentos que ecoavam pelos confins da minha alma.
Por que estou aqui, novamente?
Caminhava sobre um solo que parecia eterno, um chão áspero e coberto de folhas ressecadas. Meus passos eram silenciosos, mas o peso que carregava em meu coração ressoava, quase audível no vazio ao meu redor. A memória de Czar surgia como um sopro distante, um eco que eu jamais poderia ignorar. Seu semblante firme, seus olhos que um dia refletiram o poder de um reino, mas também a dor de um homem que perdera tanto. E ainda assim, por mais que ele estivesse longe, eu sabia que nossa ligação jamais se romperia.
Meus pensamentos voltaram a Deus. Foi Ele quem me moldou, esculpida da luz de Selene, feita para ser a guia de um rei. Mas às vezes, em momentos como este, quando o silêncio da noite era tudo o que me restava, eu me perguntava: quem sou eu, além da criação Dele? Além da serva de Czar? Há algo em mim que transcende essa missão?
Suspirei, e minha respiração foi tragada pelo vento, como se a própria natureza desejasse ouvir os sussurros dos meus dilemas.
Adiante, uma luz fraca e oscilante rompeu a escuridão. Era um pequeno farol, abandonado no tempo, cercado por árvores tão antigas quanto o mundo que conhecemos. Eu me aproximei, sentindo uma familiaridade inquietante. Ao redor do farol, uma estrutura de pedras antigas emergia do chão como um calabouço esquecido, suas paredes cobertas de musgo e tempo. Parei à entrada, minhas mãos trêmulas deslizando pelas pedras frias, sentindo a história de cada rachadura, de cada fragmento que havia sobrevivido a séculos de abandono.
Ao adentrar, o som ecoante dos meus passos nas escadas me trouxe uma sensação de déjà vu. Quantas vezes já caminhei por lugares assim? Quantas vezes, como agora, eu me sentia envolta pelas sombras do passado, enquanto buscava respostas em meio à escuridão?
Meus olhos, acostumados à penumbra, vislumbraram o que parecia ser um altar esquecido. E, sobre ele, um artefato que cintilava fracamente à luz do farol que eu carregava. Aproximei-me com cautela, cada passo marcado pelo receio do desconhecido. Quando finalmente o alcancei, notei que o objeto era um espelho — um espelho com uma moldura entalhada, ornada com símbolos arcanos que reconheci de tempos antigos, quando o mundo ainda era jovem e os deuses caminhavam entre os homens.
Curiosa, ergui o espelho e, para minha surpresa, a superfície refletiu não apenas meu rosto, mas algo mais profundo. A Lua, minha verdadeira essência, cintilava ao fundo, como se observasse de longe. Mas havia mais. Atrás da minha imagem, uma figura que eu conhecia bem: Czar. Não como o rei majestoso de sua nação, mas como o homem que sempre foi. Seus olhos estavam fixos nos meus, como se, de algum modo, ele também me visse. E então, como um sussurro vindo das profundezas de minha alma, ouvi sua voz.
“Estás perdida, Lua?”
A pergunta ecoou em minha mente. Perdida? Poderia eu, uma criação divina, realmente me perder? O conceito parecia absurdo, mas o vazio dentro de mim insistia em responder que sim. Por eras, eu lutava ao lado dele, guiava seus passos, fora sua luz nas noites mais escuras. Mas quem era eu quando o campo de batalha se aquietava? Quando os inimigos eram derrotados e as coroas eram erguidas, onde eu me encontrava?
O espelho não oferecia respostas. Apenas o reflexo de uma realidade que eu não compreendia totalmente.
De repente, um lampejo atravessou o espelho. Minha imagem se distorceu, e o cenário ao meu redor começou a se alterar. O calabouço desapareceu, substituído por um campo vasto e interminável, coberto por uma névoa densa. E, no centro deste campo, uma árvore colossal se erguia, seus galhos entrelaçando-se com o céu. As folhas brilhavam com um tom prateado, como se carregassem o brilho da Lua em cada fibra.
Aproximei-me da árvore, e quando toquei seu tronco, senti algo que não sentia há muito tempo: paz. O fardo de ser a guia de um rei, de ser a criação de Deus, de carregar em meus ombros o destino de um reino, parecia dissipar-se por um breve momento. Ali, ao pé daquela árvore ancestral, eu não era Lua, a Deidade, nem o Arcanjo, nem a mulher mais bela do universo. Eu era apenas… eu. E isso, naquele instante, era suficiente.
Mas o momento foi breve. A realidade logo se impôs novamente, e eu me vi de volta ao calabouço, o espelho ainda em minhas mãos. As respostas que buscava ainda não estavam claras, mas algo dentro de mim havia mudado. Eu sabia que, em algum lugar dentro de mim, havia mais do que os papéis que me foram dados.
Eu sou Lua. Feita por Deus, guia de Czar, sim, mas também algo mais. Algo que talvez nem o Criador ainda compreenda plenamente.
E com esse pensamento, ergui o espelho uma última vez e vi, refletida ao meu lado, a Lua lá fora, brilhando como sempre. Eu sabia que o caminho à minha frente ainda era longo, e que muitas batalhas ainda viriam. Mas, desta vez, eu as enfrentaria não apenas como uma serva, mas como alguém que compreendia, finalmente, o próprio reflexo.